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A história do Rio contada nos bueiros espalhados pelas ruas da cidade

A máquina do tempo que permite revisitar a história de uma cidade pode estar em detalhes singelos da paisagem urbana. O traçado de uma rua estreita, o estilo de uma fachada, os adornos de um chafariz, um pequeno poste e até… Os bueiros pelo chão. Pode parecer exagero, mas não é.

Na quinta-feira antes do carnaval, o estudante de direito Thiago Süssekind, de 23 anos, publicou em suas redes sociais o vídeo “A história pelos bueiros do Rio de Janeiro”, que rapidamente viralizou. Em pouco menos de três minutos, ele nos guia por siglas esquecidas que, como narra o autor, contam um pouco das “transformações políticas e tecnológicas” do Rio.

Tudo começou na porta de casa e com uma observação ortográfica. Ao sair do prédio onde mora, no Jardim Botânico, Thiago reparou na inscrição que atribui a propriedade de um bueiro para escoamento de águas pluviais à “Prefeitura do Districto Federal”.

  O fato de o Rio ter deixado de ser capital federal em 1960 já mostra que aquele bueiro é bem antigo, mas aquela letra “c” na palavra distrito me chamou a atenção. Fui pesquisar e achei o acordo ortográfico de 1931 que eliminou as consoantes mudas da língua portuguesa no Brasil. Ou seja, aquele bueiro precisa necessariamente ser anterior a isso e posterior a 1891, quando a cidade ganhou o título de Distrito Federal. Achei isso incrível e comecei a ampliar a pesquisa com outros bueiros — conta Süssekind que, como é fácil perceber, é aficionado por história.

A simples análise do bueiro que despertou a curiosidade de Thiago já remete a tópicos de relevante interesse histórico. Estão ali as transformações da língua ao longo do tempo, a alteração da divisão político-administrativa do Brasil pela Constituição Republicana de 1891 e a transferência da capital federal para Brasília. Atento, Thiago pretende aproveitar o sucesso do vídeo para ilustrar as aulas (de história, claro) que dá voluntariamente no Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular (Pecep), curso pré-vestibular comunitário que funciona na Gávea e atende principalmente a jovens da Rocinha.

Muito antes do e-mail

O “material didático” disponível é vasto. Em frente ao Paço Imperial, na Praça Quinze, Centro do Rio, por exemplo, fica o bueiro que mais chamou a atenção do pesquisador. O tampão retangular tem gravada a sigla RGT, referência à Repartição-Geral de Telégrafos, órgão da burocracia estatal que remonta ao tempo do Império, tendo funcionado até 1931, quando o então presidente Getúlio Vargas cria o Departamento dos Correios e Telégrafos (DCT) que, por sua vez, existiu com esse nome até a década de 1960. E adivinha? Também é possível encontrar bueiros com a inscrição DTC pela cidade, claro.

Era Vargas. A inscrição DCT na tampa do bueiro se refere ao Departamento dos Correios e Telégrafos, criado em 1931 

Era Vargas. A inscrição DCT na tampa do bueiro se refere ao Departamento dos Correios e Telégrafos, criado em 1931  Foto: Fabiano Rocha 

 

O bueiro do DTC não entrou no primeiro vídeo feito por Süssekind, mas pode estar no segundo. Sim, embalado pelo sucesso nas redes — só no compartilhamento feito em uma conta no Twitter já foram contabilizadas quase 1,5 milhão de visualizações —, o futuro advogado trabalha na coleta de material para um novo capítulo da sua incursão pelos bueiros da cidade.

No tempo dos bondes

Para a nova gravação, ele conta com a ajuda dos seguidores que ganhou nas últimas semanas de súbita fama nas redes. Um deles deu a dica: perto da Cobal do Humaitá tem um bueiro com a inscrição: “Cia de Carris Luz e Força — Rio de Janeiro”, que existiu com esse nome entre 1938 e 1959, quando passou a se chamar Rio Light S.A. — Serviços de Eletricidade e Carris. A empresa era responsável, além dos serviços de fornecimento de energia, pela operação dos bondes que cruzavam a cidade.

No primeiro vídeo, ele chegou a mostrar um bueiro com a inscrição C&F, que julgava ser da companhia. Na última sexta-feira, Thiago, envergando o terno que a função de advogado estagiário exige, foi até o local acompanhando da equipe do GLOBO para conferir a dica. E, de fato, lá estava o bueiro, conforme indicado.

A interação com os seguidores, aliás, tem sido bem tranquila para o jovem historiador. Os haters ainda não apareceram. O máximo de censura que recebeu foi de alguns internautas que chamaram atenção para o fato de que nem todo tampo de metal no meio da rua é chamado de bueiro. Estes seriam apenas aqueles destinados ao escoamento de água. Os demais são chamados de “poços de visita”, usados, como o nome indica, para que seja possível acessar redes de serviços subterrâneos como esgoto, comunicações e energia elétrica.

  Eu até agradeço a correção, mas não sou “bueirólogo”, sou só um cara que gosta de história — brinca.

Seja como for, a palavra bueiro tem uso consagrado no dia a dia dos cariocas para designar as pesadas tampas metálicas espalhadas pelas vias da cidade. E são muitas.

Concessão de Dom Pedro II

No caso das companhias de saneamento, é possível acompanhar a evolução dos nomes ao longo dos tempos. Aqui e ali acham-se bueiros, ou poços de visita, como queiram, da RIC, sigla para “The Rio de Janeiro City Improvements Company Ltda”, dos tempos ainda de Dom Pedro II, empresa de capital inglês que prestou serviços à cidade na área de esgoto entre 1862 e 1947; do Departamento de Água e Esgoto (DAE), de 1947 a 1957; do Departamento de Esgoto Sanitário (DES), de 1957 a 1972; e da Cedae a partir de 1975.

Do século XIX. A empresa de capital inglês RIC, que remete aos tempos de Dom Pedro II, prestou serviços de esgoto à cidade entre 1862 e 1947 
Do século XIX. A empresa de capital inglês RIC, que remete aos tempos de Dom Pedro II, prestou serviços de esgoto à cidade entre 1862 e 1947  Foto: Fabiano Rocha 

Enquanto a maior parte das pessoas só presta atenção nos bueiros quando eles entopem, causando alagamentos durante as chuvas, há um outro grupo, além dos interessados em história como Thiago Süssekind, que mantém os olhos atentos às tampas e grades pelo chão: os ladrões. O valor do metal no mercado paralelo de ferros-velhos e similares desperta a cobiça de criminosos que furtam os pesados objetos, deixando buracos no local que expõem motoristas e pedestres a risco.

Por conta disso, a Secretaria Municipal de Conservação (Seconserva) vem substituindo grelhas e tampões de ferro fundido por similares feitos de concreto. Desde 2021, foram instaladas 6.527 grelhas e 2.513 tampões feitos com o novo material. Resta saber se vão durar para contar história.

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