Seria a primeira vez que Bernardo, aos 11 dias de vida, estaria com outros parentes, no aniversário de um primo, na tarde de 11 de janeiro. Logo após sair de casa, o casal de estudantes Thayna da Silva e Souza e Brendom Diniz Ferreira, ambos de 16 anos, foi atingido por um carro no acostamento da Rodovia Rio-Santos, na altura de Itaguaí. O bebê, que estava no carrinho, morreu na hora. A mãe foi jogada em um matagal a metros de distância. O pai permaneceu preso ao para-brisas dianteiro por oito minutos, enquanto o motorista seguia viagem, em ziguezague e dando trancos para tentar que Brendom se desprendesse. Flavio Renavato Simão, de 40 anos, só parou o veículo em um hospital municipal, de onde tentou fugir, mas acabou preso por PMs no estacionamento. O teste do bafômetro feito pela Polícia Rodoviária Federal atestou a embriaguez, com concentração de 0,86 mg/L de álcool no sangue.
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A tragédia que vitimou Bernardo e a história do bombeiro João Maurício Correia Passos, filmado no mesmo dia em um posto de gasolina no Recreio, tentando ficar de pé com duas garrafas à mão, minutos antes de atropelar e matar o ciclista Cláudio Leite da Silva, estão longe de configurarem casos isolados: o aumento no consumo de álcool associado à direção é comprovado por estatísticas da Operação Lei Seca. Desde a retomada das blitzes, interrompidas de março a outubro do ano passado devido à Covid-19, o percentual de motoristas flagrados pelo bafômetro diante do total de abordagens mais do que dobrou no estado, saltando de 4,6% para 11,5%. Em média, um a cada nove condutores testados pelos agentes nos últimos três meses estava embriagado — antes, isso ocorria com um em cada 22 motoristas.
Ele tinha bebido e acabou com a nossa família. Minha filha não lembra de nada e está toda machucada — conta a avó de Bernardo, uma dona de casa de 34 anos que prefere não se identificar.
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Assim como o bombeiro João Maurício, Flavio Simão teve a prisão em flagrante convertida em preventiva pela Justiça, e os dois permanecem atrás das grades. No hospital, Brendom ainda se recupera de múltiplas fraturas.
Virada com mais álcool
A onda crescente de irresponsabilidade ao volante também veio com força no réveillon, mesmo sob chuva em grande parte do estado e com medidas de isolamento em vigor. As blitzes da Lei Seca montadas na virada do ano detectaram presença de álcool em 13,8% dos condutores, contra menos da metade (6,7%) na passagem de 2019 para 2020.
Estudos mostram que os principais efeitos da pandemia e do isolamento na saúde foram mais casos de ansiedade e o aumento do consumo de álcool, uma droga suja, que mexe com o cérebro inteiro. Para piorar, mesmo bebendo em um padrão de abuso, as pessoas que vêm fazendo isso em casa não estão procurando tratamento, e quem procura muitas vezes não encontra — explica Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). — O consumo excessivo de álcool também é uma pandemia, um problema grave de saúde pública, mas não tem quase ninguém olhando.
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Reforço na operação
Segundo o tenente-coronel Marcelo Rocha, superintendente da Operação Lei Seca no estado desde julho de 2019, a curva ascendente de mortes no trânsito foi detectada a partir de julho. A escalada na letalidade levou à implantação de protocolos sanitários que permitissem o retorno das blitzes sem colocar agentes ou motoristas em risco de contaminação.
Com abordagens criteriosas e medidas de distanciamento, o número de motoristas parados por ação foi reduzido em 80%, mas a alta no percentual de flagrados pelo bafômetro segue constante. Considerando só as blitzes feitas nos primeiros 11 dias de 2021, até a data dos dois atropelamentos fatais citados nesta reportagem, 7% dos condutores que sopraram o aparelho estavam embriagados, diante de 4,5% no mesmo período do ano passado.
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A soma do aumento no consumo de álcool com a saída das fiscalizações, não só da Lei Seca, levou a um quadro complicado. Infelizmente, além do trabalho de conscientização, que não parou, a parte de coerção também continua sendo necessária — afirma Rocha.
O antídoto contra a mistura entre álcool e direção deve vir na forma de mais repressão. De acordo com Rocha, o estado e os responsáveis pela Lei Seca vêm debatendo um aumento de efetivo e de equipes para breve, de modo a escalonar o número de ações por todo o Rio. Além disso, está prevista uma reestruturação no modelo de trabalho dos agentes, expandindo uma experiência posta em prática antes da pandemia.
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A Lei Seca Móvel, executada como laboratório entre 1º de fevereiro do ano passado e a pausa ocasionada pelo coronavírus, em 19 de março, é uma das apostas para conter a embriaguez ao volante. A estrutura mais enxuta permite que a blitz seja montada em vias estreitas e que os agentes se desloquem rapidamente por pontos próximos, para surpreender fujões. Durante os testes, conta Rocha, o índice de motoristas flagrados sob efeito de bebida alcoólica chegou a atingir 25%, cinco vezes maior do que a média aproximada da época.
Mas, se o cidadão não tomar atitudes que preservem a vida dele e a do próximo, não adianta. A responsabilidade é de todos — pontua o tenente-coronel. — Quem viu uma situação como aquela do posto (referindo-se ao vídeo do bombeiro João Maurício) poderia ter ligado para o 190. Essa proatividade é importante. O rapaz percorreu apenas 160 metros a partir dali e promoveu uma tragédia.
O retorno da Lei Seca Móvel representa ainda uma arma contra aquele que o superintendente da operação classifica como “maior vilão”: o uso de redes sociais e aplicativos que informam o local de blitzes. Basta uma barreira ir parar nessas ferramentas para que o percentual de testes positivos no bafômetro sofra uma queda imediata.
Perde-se produtividade no nosso trabalho, mas a sociedade também perde segurança. Isso é o principal lamenta Rocha.